Almeida
Petra.Preta
Uma artista que toma nas suas mãos a sua própria imagem, a sua própria voz, as suas próprias palavras, a sua própria identidade, o seu próprio lugar, a sua própria justiça. Petra.Preta, aka Sara Fonseca da Graça, usa diferentes suportes para exprimir o que podem ser, e são, todos os assuntos passíveis de serem pensados por si, ou seja, qualquer assunto do mundo. O desenho e a palavra são o início de tudo, estiveram sempre lá na vida da artista, mas o teatro foi a sua formação. Hoje, o que vemos são pinturas, instalações, performances, filmes, desenhos, livros. Linguagem visual ou escrita, seja para ler, seja para ver, seja para ser dita em voz alta.
Essa sua voz, no contexto Português, desenha-se promissora. Esta artista cheia de facetas reclama para si o simples direito de ser ela mesma quem representa o seu corpo, os seus livros, o seu espaço, o seu descanso, a sua liberdade, as coisas em que acredita. “Uso a minha arte para responder às minhas necessidades”, diz Sara Fonseca da Graça. Estas necessidades são o querer expressar, transformar, e repor a justiça no mundo que a rodeia. É o seu lugar de fala. Necessidades vitais e humanas. Justiça é uma mulher negra escolher representar-se, aquilo em que acredita, a si, ao seu corpo, a à sua voz, como bem lhe apetecer. É escolher reclamar os seus direitos roubados. Por exemplo, quem desenha o seu corpo, é ela. E mais ninguém. A nós, ao público, é pedido o que sempre nos é pedido, que pensemos os assuntos que nos apresenta. Com atenção.
Uma infância que lhe mostrou de forma constante, a pintura e o desenho, seja por meio da mãe educadora de infância, ou por um padrasto que pintava e sempre a incentivou, Sara Fonseca da Graça percorreu os anos seguintes de adolescência com a influência do graffiti, e com vontade que os desenhos saíssem do caderno da escola. Mas até chegar aí deu uma volta maior e mais abrangente: experimentou as artes performativas, em Almada no grupo Cena Múltipla, depois na Escola Superior de Teatro e Cinema, na Amadora, e durante esses anos também no grupo do qual foi cofundadora, os Medalha d’Ouro. Essa convivência ajudou a desconstruir a velha visão do teatro preso ao texto clássico, e deu-lhe a noção da verdadeira liberdade da criação contemporânea.
Depois do fim dos Medalha d’Ouro, Fonseca da Graça foi para Cabo Verde no início do que se veio a revelar uma viagem transformadora. Foi aí, no Centro de Nacional de Artesanato e Design que fez a sua primeira exposição individual, “Por uma Natureza das Coisas” (2017) com desenhos que achava iriam ser um livro mas que acabaram nas paredes de uma galeria. De volta a Lisboa, seguiu-se o livro #Musicasdomundo e uma primeira instalação, na Rua das Gaivotas 6, intitulada, Tabanka, da Proteção à Cura. A experiência no teatro, traz destreza a lidar com o espaço expositivo, com o tempo despendido a pensar o display, e a facilidade em fazer da palavra matéria. Fazendo lembrar artistas como João Penalva ou Ana Jotta, cuja experiência nas artes performativas também contaminou a sua obra, o seu sentido de display e a sua produção de objetos.
Em Solo Status (2021), uma performance a convite do colectivo Silly Season, a artista pinta o seu autorretrato, ao mesmo tempo que vai revelando uma comunidade criada por si através de retratos de pessoas importantes para a sua formação. O “solo” era a posição que a artista previu: entre o público na plateia da Rua das Gaivotas, e a artista sozinha em palco, seria ela própria quase de certeza a única mulher negra. Uma única artista negra não pode carregar nos seus ombros toda a responsabilidade de defender e representar a sua cultura e raça. Daí a comunidade que a artista trouxe consigo para cena, para consigo falar sobre o que representava estar ali sozinha: a mãe, o pai, o padrasto, o namorado, as Aurora Negra, Grada Kilomba, bell hooks, Achille Mbembe, Audre Lorde.
É esta série de retratos usados em cena que vai dar lugar à obra Humor Negro, um conjunto de pinturas suspensas em grupo. Cada membro da sua comunidade apresenta agora um sorriso rasgado colocado pela artista, a felicidade dos corpos negros. Esta peça foi apresentada no Espaço Alkantara (2021), num evento com curadoria das Aurora Negra. Mais tarde, Humor Negro foi apresentada no maat, na exposição Interferências (2022). A luta existe no presente, mas a violência não tem sempre que ser eternamente reproduzida e revivida, lembra a artista. A black joy é para ser celebrada, e o descanso para ser usufruído.
“O descanso é também uma medida de liberdade”, escreve Petra.Preta no seu projeto seguinte, Manchê Bom (2021), integrado no Primeiro Rascunho, um projeto do TBA (Teatro do Bairro Alto) que envolvia um grupo de artistas que expressou em jeito de rascunho os dois anos de pandemia. O resultado expressou-se de forma digital e numa edição impressa. Petra.Preta decidiu fazer Manchê Bom, uma travessia em forma de filme e palavras escritas, onde vemos a artista que vive no Miratejo, a atravessar o rio no barco até Belém, carregando uma pintura. Ouvimos (ou lemos) a autora: “Penso frequentemente nesta relação com os elementos da natureza em específico com a água. Oceanos, mares, lagos, rios. A minha relação é com o rio, não é a única… mas é a mais íntima, a mais duradoura e repetitiva. Posso fazer uma pausa? Preciso parar. São demasiadas questões”. E esta frase lembra bell hooks a propósito de Lorna Simpson e da sua obra, The Waterbearer, “É a água que permite a figura da mulher negra reclamar um lugar na história, ligar-se às suas ancestrais, passado e presente”.