Josefa de Obidos e um oceano

Josefa de Óbidos

Sevilha, 1630 – Óbidos, 1684

Artista do protobarroco nacional na sua característica coeva, regional, de forte ligação religiosa, Josefa de Ayala Figueira, conhecida pela sua forte ligação ao núcleo social e artístico de Óbidos, desenvolveu uma longa carreira de artista independente. Foi pintora de retratos, peças religiosas, e de naturezas-mortas sobre tela, madeira e cobre. Trabalhou também com gravura e cerâmica. Durante uma carreira de quatro décadas, desenvolveu um estilo próprio pelo qual tem sido reconhecida durante séculos, ocupando um lugar único na história e historiografia de arte portuguesas, como artista mulher cujo renome se fixou na memória coletiva de forma predominante.

Josefa de Óbidos [JO] era filha do pintor português Baltazar Gomes Figueira, pintor da corte que terá estudado em Sevilha e aprendido na esfera dos grandes pintores espanhóis do Barroco. Tendo vivido em Coimbra, integrada no Convento dos Eremitas Agostinhos de Santa Ana, JO passou a maioria da sua vida na vila de Óbidos, onde se estabeleceu como pintora na oficina do pai, e mais tarde como artista emancipada. Viveu dentro do círculo artístico de Óbidos, com visitas ocasionais a outras regiões da Estremadura. Teve seguidores, e uma prática estabelecida. É possível falar de uma escola de Óbidos, onde as tradições desenvolvidas por artistas locais ou de passagem unem-se aos interesses dos patronos e mecenas, em grande maioria a Igreja. JO chegou também a ter o patronato da Família Real.

Uma das artistas portuguesas com mais bibliografia, JO viveu num contexto de produção artística periférico, num século XVII onde a disseminação de informação, estilos e técnicas era reduzida, em particular para mulheres artistas. A sua obra estabelece-se dentro do programa artístico de Contra-Reforma que seguiu o Concílio de Trento, num contexto onde a liberdade temática dependia de encomendas específicas – contexto no qual se destacou pelo cunho original com que desenvolvia as obras, a minúcia da iluminação, a riqueza cromática e a complexidade das peças onde referências quotidianas e simbólicas eram unidas por uma preocupação subjacente pela mortalidade, metamorfose e dimensão espiritual.

Aos 14 anos, durante o seu período conventual em Coimbra, JO produz a sua primeira peça – indicando que, apesar das restrições, havia abertura para trabalho artístico nos conventos femininos, e meios para a construção de uma imagética e iconografia que se mantêm com grande variedade ao longo de toda a sua obra. Terá sido este o momento fundamental de autodeterminação; embora artistas freiras existissem, como a Soror Joana Baptista, a independência social e financeira da Josefa de Óbidos (definida no seu testamento como sendo “molher donzela que nunca casou emancipada com licença dos pais”), que lhe permitiu herdar terras e estabelecer-se como recipiente e produtora de encomendas a grandes mecenas.

Apesar do isolamento no espaço religioso e, mais tarde, do meio social e cultural ativo mas relativamente pequeno de Óbidos, nota-se na sua obra a influência do tenebrismo italiano e espanhol, e referências diretas às obras de Francisco Zurbarán e Francisco Herrera, sendo este último o seu padrinho. A riqueza das suas naturezas mortas marca influência flamenga, acessível através de gravuras, e no qual se nota a falta de aprendizagem formal no campo do desenho e perspetiva. Longe de italianismos e referências aos panteões clássicos, JO aprende e apreende um universo ao mesmo tempo distante e intensamente sensorial, onde o foco central das cenas intimistas expressa uma tridimensão encantatória. O excesso barroco nota-se na dimensão de algumas obras encomendadas, assim como no apelo das naturezas-mortas, inseridas dentro da tradição de pintura de bodegones, peças de “dispensa”, nas quais objetos do quotidiano e do natural geram um teor simbólico. A expressividade da pintura ser explorada de forma a fazer transparecer a noção de que a realidade se encontrava inscrita de espiritualidade.

O seu interesse pelo figurativismo naturalista era apoiado pela disposição dos elementos simbólicos das suas peças. Num total do que se julgam ser 150 obras, as diferentes vertentes da obra de JO contradizem a perspetiva errada de uma artista focada apenas em naturezas-mortas – fez retratos de contemporâneos, murais religiosos, peças hagiográficas e gravuras.

Como mulher independente com algumas posses, investiu em terrenos e manteve a sua independência financeira. É de notar que as suas escolhas artísticas não descuram questões de mercado – a riqueza espiritual das suas peças correspondia tematicamente ao crescimento do interesse privado por naturezas-mortas, e foi como artista independente com ligações religiosas que Josefa de Óbidos recebeu várias encomendas de conventos em Óbidos, Évora, Cascais, Peniche e Coimbra, entre outros.

A sua obra afasta-se da do seu pai ao aderir às inovações do seu tempo, com pincelado da escuridão para a luz, e uma maior variedade de materiais, afastando-se das tendências portuguesas e marcando a sua posição como artista capaz de seguir os novos modelos sevilhanos. O seu percurso traça um espelho do país e a sua nacionalidade dupla é um símbolo e sintoma dos tempos que viveu. Dentro do contexto de uma vila com alianças nacionalistas, Josefa d’Óbidos desenvolveu uma obra extensa mas, como Vítor Serrão aponta, a artista não deixou de sofrer as dificuldades do tempo, e da inserção de uma mulher na educação artística. Enquanto artista do século XVII, o seu percurso possui semelhanças e diferenças com outras e outros artistas, em particular outras pintoras do período barroco inseridas na arte bodeguista do tridentinismo. JO ocupa um lugar único na história do barroco nacional, mas não inteiramente inusitado na arte do seu tempo. O seu nome é apenas o que mais perdurou entre os séculos, uma de várias artistas portuguesas cuja obras se encontram perdidas ou não assinadas.

Maria Duran Marques
Licenciada em Artes e Humanidades e Mestranda em História de Arte e Património pela Faculdade de Letras da UL. Pós-graduada em Curadoria de Arte pela FCSH - UNL. Nasceu em Lisboa em 1997