Capelo
Isabel Cordovil
Como guardar a vida toda até não termos vida nenhuma? Que invólucro servirá para a conter? Que volume ocupa a vida? Qual é a medida de vida indicada? Tem peso? Isabel Cordovil gosta de unidades de medida, de exatidão e de ler estatísticas. Para cada 100 casamentos, 78 divórcios. Em suicídios, as mulheres matam-se mais com fármacos. Como artista, meia cientista de trazer por casa, meia espiã de tantas coisas, Isabel Cordovil pôs-se a cozinhar uma “bolinha de Xanax” (de 8 por 6 cm precisamente). Tendo em conta o seu peso e altura, esta bolinha já era suficiente para matar a artista. As contas foram feitas. Numa taça dourada, que podia conter o corpo de cristo, a artista posou a bolinha – esta peça chama-se, Untitled (10000mg alprazolam, 1000mg sucrose). Na ordem de uma vida de artista esta poderia ser a primeira ou a última peça, tanto faz. Na obra de Cordovil, é apenas uma das e está no meio de nós (num acervo algures em Lisboa, segundo a artista).
Num impulso educado por vidas opostas (educação e idade adulta), Isabel Cordovil utiliza qualquer suporte para pensar a medida da sua vida dentro da arte contemporânea. As suas peças são monumentais em pequena-grande escala. Curtos poemas épicos. Nelas são prestadas homenagens, existem autores e amores mencionados, existe morte, tudo por entre objetos comprados, dados ou encontrados. Não há qualquer estilo reconhecível apenas muitas pequenas imperfeições estéticas. Colunas rachadas, vidros partidos. A artista diz: “Fazer arte é ter um desejo quase sôfrego de entendimento”. Parta-se, então a arte pela vida, ou o contrário. O que é comum a todo o seu percurso, de raiz conceptual, é aquilo que é instrumento dessa procura de entendimento: a linguagem percorre todo o seu trabalho, dos títulos como poemas demasiado curtos, às palavras em voz alta, ou livros publicados e oferecidos.
Depois de 18 anos de uma educação muito católica e rigorosa, uma jovem Isabel Cordovil encontrou as “suas” pessoas no meio de um grupo de artistas de raiz feminista e queer, criadores de atividades artísticas multidisciplinares, da organização de festas, a exposições, ou espetáculos. Num arco temporal de 2011 a 2019, a sua formação passou pela Central Saint Martins (Londres), Belas-Artes de Lisboa, Athens School of Fine Arts, terminando com um mestrado na HEAD University of Art and Design (em Genebra).
Parecem totais opostos, mas estes anos de formação, pré e pós religiosos, não se dividem de forma clara. As palavras da bíblia ainda impregnam a vida da artista mas talvez hoje andem mais pelas suas obras. A sua produção de esculturas, objetos e imagens é movida pela chamada idea art, um termo que substituiu a chamada arte conceptual, pelo menos para o MOMA, Museu of Modern Art, em Nova Iorque, catedral da arte ocidental, na recente renovação da sua coleção em 2019.
Os trabalhos de Cordovil projectam, por vezes, a ficção do espetáculo religioso, dita em voz alta por palavras, nascida dentro da liberdade do hedonismo da festa after. A noite continua a partir das 7 da manhã. Ou não? Lembremos The Sunlight Will Break the Party (2022), apresentada na Rua das Gaivotas, uma instalação de Isabel Cordovil x gas (comissariada por David Revés): o fim da festa ou o começo do after, com colunas, música, spoken words, e uma pista que é um chão de telhados de vidro já com destino traçado. Mas ainda é possível dançar sobre este chão de vidro duplo, cheio de muitas pequenas imperfeições estéticas, o vidro é duplo mas só uma parte foi agredida, ou talvez baleada? Outro exemplo: Em Two Soviet Helmets in the Position of Rodin’s Le Baiser (2022), Cordovil mandou vir um capacete mas quando a encomenda chegou, eram duas unidades. A artista julgou ser um erro, mas o vendedor declarou, “eles estiveram sempre juntos, ninguém vai comprar o outro, fique com os dois.” Adivinham-se mais divinas providências pela estrada fora.