Ines Brites e um oceano miguel miguel

Inês Brites

Coimbra, 1992
Vive e trabalha em Lisboa

Como arrumar o mundo e curar os seus males? Inserindo-se numa tradição escultórica e do objecto, conceptual e duchampiana, Inês Brites arruma o universo material e virtual, colecionando e dissecando os chamados objetos de uso comum, quase sempre descartados. Numa incessante limpeza, catalogação e display, a artista reflete sobre o mundo e temas maiores do nosso tempo, estimulando-nos a considerar o lixo que produzimos de forma diária, o desperdício, e a maneira como participamos ou não no seio das nossas comunidades.

Esses objetos requalificados em ambiente expositivo, são muitas vezes encontrados pela artista na rua (trouvé e ready-made), ou passados por meio de moldes a outros materiais moles ou duros (cera, silicone, látex), que habitam as paredes e o chão de uma galeria, alguns em lugares inusitados, em displays que parecem muitas vezes ser pequenos cenários feitos para serem fotografados. Porém, essa imagem fotográfica existe apenas na mente da artista.

A toalha que desafia a gravidade, esticada pela parede, aquele objeto de escala tão pequena e tão frágil que é difícil acreditar que se mantém intacto aos olhares do público, os materiais coloridos e a forma tosca como estão no chão ou pendurados num cano ou numa rede (de pesca), revelam com humor a decadência do mundo ocidental. Tudo isto está na nossa cozinha, na nossa casa, no nosso lixo impossível de reciclar, e no meio da estrada a levar com o sol do fim da tarde. São estas imagens que a artista “fotografa”, recolhe, e leva para o atelier para arrumar. A artista explica: “Entendo o meu trabalho como uma casa em segunda mão, onde todas as coisas obsoletas e todo o tipo de coleções vão parar”. O lixo de todos é ainda o tesouro de alguns.

Depois de se licenciar em Pintura, pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, e nos entremeios de tentativas infrutíferas de produzir imagens através de pintura, Brites apercebeu-se que reagia a essa frustração passando os dias a arrumar o atelier. Movia objetos de um lado para o outro, de uma caixa para outra, passava dias e dias a arrumar caixas e suas categorias. Organizava pequenas pedras ou papéis apanhados na rua, numa tentativa de organizar o mundo e o seu excesso. Uma respigadora nata, a artista coleciona objetos desde criança, viajando com um ou outro no bolso, como uma companhia permanente, uma amiga a proteger.

Foi um colega de atelier que a desafiou a fazer “alguma coisa” com essa atividade incessante de arrumação e catalogação do espaço de trabalho. A partir daí, Brites não parou na procura da tridimensionalidade, e da experimentação envolvendo materiais viscosos como o silicone. O seu mundo de artista estava a ser construído por si, mesmo à sua volta, sem a princípio se aperceber. Decidiu não ter pressa, e assumir o que se revelou ser a sua prática artística, não-clássica, não-perfeccionista. Até o humor e a alegria da artista se podem fundir e influenciar a sua produção. Poderá estar nos materiais que escolhe, nas cores que investiga, no lado tosco da coleção apresentada, que existe numa galeria mas estranhamente também poderia existir como coleção da cabana de um pescador na praia. A artista encontra os objetos desprezados no meio da rua, mas a sua visão atribui-lhes valor – ao cenário encontrado, à luz do dia sobre uma caixa de ovos no chão. Esse momento é transportado pela artista para a parede da galeria nos seus pequenos displays de objetos que parecem estar prontos a fotografar. O que vemos parecem os bastidores de uma imagem que só existe na cabeça da artista. Os “truques” dessa fabricação não existente continuam lá, a toalha em cisne está hirta, o teclado afinal é mole, pendurado e apanhado na rede de pesca.

Brites é também uma organizadora generosa. Estimulando colaborações e interações com os seus colegas artistas e a sua comunidade, através de projetos que aproximam autores, e propiciam verdadeiras parcerias. No seu projeto “Ciclo de Amizades” (2019-2022), Inês Brites convida outros artistas a fazer uma exposição no seu atelier, movida por uma “vontade de explorar a prática artística de modo mutante e moldável”. Um desejo de fundir-se com outros artistas e contrariar o individualismo que parece prevalecer, contrariando também a versão de “white cube”. Um exercício que também é de diversão, que começa com uma mini-residência onde a dupla começa a produzir em conjunto. Neste projeto já colaborou com Lea Managil, Tânia Geiroto Marcelino, André Costa, Diogo Lança Branco, Catarina Real e Maura Carneiro.

Susana Pomba
Curadora e editora nascida em Lisboa em 1974
Retrato
© Miguel Miguel