Botelho
Catarina Mil-Homens
Tudo começa pelo desenho. Pensar esta nobre disciplina através de obras que utilizam a escultura, a instalação, e o vídeo. A artista explica que utiliza o “desenho como maneira de articular a existência”. A pesquisa de Catarina Mil-Homens passa, não só, por múltiplos diários gráficos mas pelo pensamento teórico. Exemplo primordial disso mesmo é a sua tese de mestrado, feita na Universidade de Melbourne, intitulada Matter & Spirit: The Syncretic Drawing, que parte da análise do seu próprio processo criativo. Começou a expor regularmente a partir de 2012.
Os espaços expositivos onde instala as suas peças são marcados pelo silêncio, por espectadores que se aproximam com cuidado, ou por outros que não se apercebem das suas obras e por vezes causam acidentes. Obras delicadas que falam de processos conscientes e inconscientes, matéria derramada, silêncio (quase religioso) e destruição. Utilizam o negro do carvão, e o branco do papel, da tela, do chão, ou da parede. As suas composições são abstractas, e segundo Marta Manterón, “emergem das sombras para se tornarem visíveis”.
Antes de ser artista, Mil-Homens já se tinha descoberto como profissional. Depois de uma educação religiosa e rigorosa, seguida da Escola António Arroio, Mil-Homens decidiu fazer um curso de ourivesaria (1999-2001), outro de formação de atores (1999-2001), e um bacharel em design de interiores (2001-2005). Aos 21 anos tomou a responsabilidade de integrar o elenco de uma telenovela em prime time na televisão portuguesa. A adquirida maturidade precoce, fez com que à quarta tomasse “a” decisão, que suspeitamos tenha sido das mais importantes. Escolher fazer uma segunda licenciatura, e passar 4 anos em Pintura na Faculdade de Belas-Artes, em Lisboa (2008-2012). Depois de uma primeira exposição individual na Módulo, em 2013, a vida de Mil-Homens deu outra reviravolta que a levou à Austrália, onde fez o seu mestrado e amadureceu ainda mais como artista e investigadora. A partir de 2019, o regresso a Portugal foi-se fazendo aos poucos, tendo sido inaugurado com a exposição individual Sobre a Lâmina (Uma Lulik, 2019).
O processo da artista passa por diversas escalas, começando nos seus diários gráficos e no ensaio de ideias e pesquisas. Segue-se a experimentação no atelier, na ocupação e domínio do carvão, material impossível de controlar totalmente. Quando a obra sai do atelier para ocupar outro espaço, o expositivo, o resultado pode se tornar numa escultura delicada, numa grande instalação, na imagem em movimento, ou no cruzamento desses suportes. Mas cada peça e instalação passa por um planeamento rigoroso. Cada obra é infinitamente considerada, experimentada, e definida.
Mas a artista sabe que o processo de montagem traz sempre surpresas e imprevistos, que no seu caso continuam pelo tempo de exposição, depois da peça apresentada e “final”. Na sua primeira exposição, na Módulo Galeria, uma explosão ocorreu num andar acima da galeria, fazendo com que parte do tecto caísse sobre a sua obra em carvão. Quando a artista chegou, encontrou metade da obra apagada, desaparecida. Na exposição de final de curso da Faculdade de Belas Artes, a peça que apresentou foi tão pisada pelos visitantes que o carvão proliferava pelo chão do espaço expositivo.
Existe cerimónia ao abordar como visitante uma exposição de Mil-Homens, porque esta é sempre delicada, e existe ao mesmo tempo uma destruição latente, sempre prestes a acontecer. Uma explosão silenciosa que a artista teve que aceitar: as suas obras não vão permanecer estanques, imutáveis, invioláveis, ou sagradas. Consciente ou inconscientemente, os visitantes e o imprevisto participam e influenciam aquilo que as obras se tornam ao longo do tempo.
Mas o performativo não está apenas alocado ao espetador ou ao imprevisto. A própria artista mantêm um fazer laborioso com as suas obras, uma atividade muitas vezes repetitiva que implica uma ação performativa. Esta atividade era invisível ao público até ao dia em que a artista decidiu filmar a montagem das suas obras, fazendo surgir vídeos que documentam os traços largos, a atividade exaustiva, repetitiva, e de contínuo acrescentar, o “fazer” da obra, a sua aparição. Lembremo-nos, esta artista sabe bem onde está a câmara, sabe bem onde se colocar. E esta performatividade parece começar a transbordar para o primeiro plano nas suas obras: no vídeo, Green Room (2018) vemos a artista colocar-se e assumir-se segura em frente à câmara, naquela que também é a primeira obra em que deixa o monocromático negro do desenho, e começa a utilizar a cor.