Alice Marcelino e um oceano

Alice Marcelino

Luanda, Angola, 1980
Vive e trabalha em Londres

É do confronto entre a riqueza e densidade da sua própria cultura e dos seus dados biográficos, com a vivência e história das cidades por onde passou – e todas as aproximações, sofrimentos, injustiças e afastamentos – que vive o trabalho de Alice Marcelino. A expor desde a segunda metade dos anos 2010, a fotografia na sua vertente documental, uma forte tradição familiar, tornou-se o seu suporte principal.

Luanda, Lisboa, Paris, Atenas, Londres. Como é que uma mulher negra, jovem, navega por estas cidades? Como é que séculos de opressão de um povo se manifestam todos os dias nas cidades da Europa, ou no Sul Global? Nos países colonizadores, e nos colonizados. De que maneira é que o racismo e a violência sobre os corpos negros se perpetua no mundo digital? As suas séries fotográficas são boas oportunidades para os Portugueses brancos estudarem a realidade das pessoas negras, que define o tempo em que vivemos, onde direitos humanos básicos são ignorados e as injustiças diárias são quase nada discutidas ou chamadas à atenção.

Já em idade adulta, Alice Marcelino saiu de Portugal, indo viver para Paris e mais tarde para Atenas. Mas foi em Londres, e no bairro de Brixton em especial, que encontrou a sua casa, e o sentimento mais profundo de “belonging” – uma verdadeira afinidade a um lugar. É aí que vive há quase 10 anos. Depois de se formar em fotografia pela Universidade de East London, escolheu o mestrado em Digital Media na Universidade de Goldsmiths, talvez porque pensar a fotografia implique pensar também outros meios digitais.

Conhecido pela sua grande comunidade de descendência Afro-caribenha, foi no bairro de Brixton (no Sul de Londres) que Marcelino começou a registar o que via à sua volta, movida pela sua própria procura de identidade, pela procura de um usufruir pleno da sua cultura, pelo saber dos seus direitos, pela tomada de decisão dos espaços que quer ocupar. Brixton é um lugar rico, onde é mais fácil obter informação, do que em Portugal ou Lisboa, por exemplo, onde se continua a perpetuar a invisibilização, que começa pela inexistente recolha de dados étnico-raciais. É em Brixton, que faz crescer a série Kindumba (2015-2017), “o meu cabelo”, onde desmonta a diversidade e riqueza do cabelo negro. Talvez estas imagens que registam a parte de trás da nuca, pessoa a pessoa, fazendo uma celebração do cabelo negro, possam também ser chamadas de retratos. O cabelo como muito mais do que apenas o que está na cabeça, é troféu da identidade, um ponto alto do orgulho negro.

É também em Brixton que Marcelino começa a fotografar funerais para famílias em sofrimento, um trabalho que chega a convite de um amigo. Algo estranho num país tão católico como Portugal mas comum noutras religiões. Depara-se com a geração Windrush, emigrantes vindos das Caraíbas entre os anos 1940 e 1970, que em 2018 se viram envoltos num escândalo que expôs anos e anos de políticas de imigração e legislações racistas por parte do governo britânico. Pessoas que viram os seus direitos negados, que deixaram de ter acesso ao serviço de saúde britânico, que perderam as suas casas, e/ou que se viram ameaçados a regressar à Jamaica depois de vidas inteiras no Reino Unido. A série, Love 2 Remember (2016-2022), mostra-nos esta geração de britânicos. Num trabalho mais recente, Black Skin White Algorithms, a artista investiga como os estereótipos passam para o mundo virtual, como os corpos negros são na mesma vigiados pela tecnologia de reconhecimento facial, e como o algoritmo é desenhado apenas para brancos. Se não é branco, não existe.

Durante uma conversa sobre o seu trabalho, a artista pontua o seu discurso fazendo referência a histórias reais e brutais. O seu espanto quando uma senhora que tinha acabado de perder o seu filho, no próprio funeral, lhe perguntou, a ela, fotógrafa, se precisava de alguma coisa. Ou a menina autista de 15 anos que foi revistada, as suas cuecas cortadas, em frente a polícias homens, no Reino Unido. Acusada indevidamente de estar em posse de drogas. Ou quando refere Cláudia Simões, agredida pela PSP na Amadora, onde Marcelino também viveu.

A escritora britânica Zadie Smith, londrina de mãe jamaicana e pai irlandês, coloca bem a questão desta violência: “o que foi feito ao povo negro, historicamente, foi retirá-los do seu tempo de vida. (…) as consequências disso não têm fim. Cada pessoa tem os seus traumas. Não é uma competição de traumas. Mas são diferentes na sua natureza. E este é sobre ser retirado do tempo”.

Susana Pomba
Curadora e editora nascida em Lisboa em 1974
Retrato
Cortesia da Artista © Laurent Clement