Rosa
Alice Jorge
Ligada primeiro ao Neorrealismo (anos 1945-1963, em Portugal) e à chamada terceira geração de modernistas, ao longo das décadas, Alice Jorge tornou-se exímia artista e professora, utilizando diversos suportes como a pintura, desenho, cerâmica, gravura, tapeçaria ou azulejo, para investigar a figura feminina, e depois a abstração. Segundo a investigadora e professora Sofia Ponte, a artista “representa esse processo [identitário e feminino] tal como o sentiu e viu: enigmático, poético, místico e a partir de certa altura intensamente abstrato”. Ver os seus nus femininos na época (na primeira metade dos anos 1960), era como “ler O Segundo Sexo, da Simone de Beauvoir”, afirmou o encenador e realizador Jorge Silva Melo, ao jornal Público, em 2008, aquando da morte da artista.
“A gente lança-se sobre o trabalho que quer fazer, mas é todo o corpo que está empenhado nesse trabalho, não é só o punho, não é só a mão. A mão é só o objecto que a gente usa para exprimir aquilo que está a ver ou que está a sentir”. Assim ouvimos pela voz da própria artista no vídeo de apresentação de Alice Jorge – Traços, Ecos e Revelações, exposição com curadoria de Paula Loura Batista e Helena Seita que o Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, lhe dedicou em 2013, e onde se apresentava obras em gravura, desenho, pintura e ilustração que integram parte de um espólio de cerca de 150 obras, cedido na altura por Júlio Pomar, que foi seu marido entre 1955 e 1961.
A colaboração entre Jorge e Pomar foi produtiva e digna de nota, em especial no que diz respeito à experimentação nas artes decorativas, assim como a feitura de murais cerâmicos para espaços de restauração, culturais, e outros, trabalhos que durante a década de 1950, eram uma importante fonte de rendimento para ambos. Central nesta relação e desenvolvimento é o casal de escultores, Maria Barreira e Vasco Pereira da Conceição, com fortes ligações à Cerâmica Bombarralense Limitada, com quem Alice Jorge e Júlio Pomar partilham atelier na Praça da Alegria, em Lisboa, antigo atelier do pintor José Malhoa. O casal de artistas trabalha também com a Fábrica-Escola Irmãos Stephens, na Marinha Grande, e com o Estúdio Secla, nas Caldas da Rainha, onde desenham objetos utilitários, como jarras, travessas, e pratos.
Desta união surgem também duas obras, que ainda hoje podem ser vistas pelas ruas de Lisboa: o enorme painel cerâmico com relevos e motivos marítimos na fachada do edifício-sede da Soponata (Sociedade Portuguesa de Navios Tanque), na Rua do Açúcar 86; e o painel que reveste uma das escadarias da Avenida Infante Santo (entre o nº66 e 68), fabricado com azulejos da Fábrica de Cerâmica Sant’Anna, e restaurado durante o século XXI. Realizado em 1959, o painel apresenta motivos geométricos e abstractos compostos por Alice Jorge, onde vive uma série de personagens criadas por Pomar (vendedores de peixe, castanhas, e laranjas, crianças que brincam, etc.).
No seu período de formação, Alice Jorge passa pela Escola António Arroio, a seguir pela Escola de Belas Artes de Lisboa, mas em 1948 pede transferência para a Escola de Belas Artes do Porto, para fazer a cadeira de desenho arquitectónico. Note-se: deixa Lisboa temporariamente por causa de um professor que chumbava sistematicamente as alunas nas Belas-Artes de Lisboa, que adivinhamos ser o diretor da escola dessa altura, Arq.º Luís Alexandre da Cunha, apelidado de “Cunha Bruto”, conhecido por chumbar todos os alunos que vinham da Escola de Artes Aplicadas de António Arroio. “Cunha Bruto”, era conhecido por não reconhecer capacidades profissionais aos seres humanos do sexo feminino, pelas ligações à PIDE e por denunciar alunos. Aliás, para além de mulher, Jorge também vinha da António Arroio, e opunha-se ao regime fascista, logo supomos, tripla ameaça para Cunha Bruto. A solução para muitos alunos na altura era pedir transferência para completar na escola do Porto as respectivas cadeiras desse professor. Fica clara então a sua ligação aos movimentos antifascistas da altura, assim como às lutas pelos direitos das mulheres: Maria Alice da Silva Jorge foi membro do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas.
Quando volta do Porto para Lisboa, Jorge frequenta, em 1952 e 1953, a cadeira de pedagogia na Faculdade de Letras, “para melhor preparação face às aulas que dava no ensino secundário” (Museu do Neo-Realismo), mas devido à sua forte posição antirregime, a artista e professora é demitida em 1955 do ensino secundário onde leccionava desde 1951, só voltando ao ensino em escolas públicas em 1974, mas nunca abandonando a sua vertente pedagógica, tendo dado aulas de gravura e pintura na SNBA, e no AR.CO.
Em 1956, Jorge é uma das fundadoras da Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, onde teve um papel importantíssimo na renovação e avanço da gravura em Portugal — papel esse que continuou e solidificou pelas décadas seguintes, publicando com Maria Gabriel, nos anos 1980, o livro Técnicas da Gravura Artística: Xilogravura, Linóleo, Calcografia, Litografia, um manual único destas técnicas em Portugal. A Bienal de Gravura da Amadora, prestou à sua obra gráfica a devida homenagem, em 1992, fazendo uma retrospectiva.
Depois de usufruir de uma estadia em Paris, como beneficiária de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, faz uma individual de pintura de abstrações geométricas, em 1972, na Galeria II de exposições temporárias da dita instituição, intitulada 13 Quadros de Alice Jorge. A Revista Colóquio Artes (2.ª série, n.º 7, ano 14) faz referência à exposição citando o autor do texto do catálogo, o pintor Fernando de Azevedo, que descreve as pinturas como, “vozes e notícias da magnífica viagem para a simplicidade”.
O seu caminho pela abstração segue bem pela década de 1990, em entrevista à RTP, em 1991, e em resposta à pergunta: “A evocação da natureza continua a ser uma constante?”, Jorge declara: “Sim, é quase uma constante. Quando vou a qualquer lado, olho sem querer, olho para as coisas, não as vou copiar mas ficam cá dentro resíduos das coisas que vejo. Essas coisas surgem sem qualquer analogia com o que eu vi mas partiu daí, não importa depois o que resulta”.
Fez também de forma contínua muita ilustração para livros como: In Memoriam Memoriae de David Mourão-Ferreira, Cinco Réis de Gente de Aquilino Ribeiro, Mistérios de Matilde Rosa Araújo, Crisfal a mais bela écloga portuguesa de José Régio, assim como das antologias de poetas portugueses organizadas pelo mesmo, e de uma série de clássicos em edição especial como Divina Comédia, Mil e Uma Noites, Decameron, e Novelas Exemplares.
Aquando da exposição no Museu do Neo-Realismo, em 2013, o historiador e curador David Santos declarou-a como, “uma das maiores artistas portuguesas do século XX”.